terça-feira, 10 de novembro de 2009

Sobre o acordo ortográfico (Para reflectirmos)

(Chamo a vossa atenção para o facto de este texto estar redigido na variante do Português do Brasil)


Alexei Bueno é um jovem intelectual e curador na Academia Brasileira de Letras . Também é brizolista.Seu texto reflete as dificuldades do professor brasileiro com a famigerada reforma ortográfica . Alvaro Bastos(membro do diretório Nacional do PDT )






O PONTO INDEFENSÁVEL

Há, no recente acordo ortográfico, independentemente de tudo que nele se possa discutir, um ponto absolutamente indefensável, a retirada do acento agudo de pára, do verbo parar. Qualquer indivíduo letrado e com o mínimo de bom-senso já percebeu fartamente as dubiedades absurdas criadas por essa reforma equivocada. Para dar um exemplo simplíssimo, reproduzo uma manchete do jornal O Globo, que passou a usar a nova ortografia no dia seguinte à sua assinatura:

CRISE PARA A CONSTRUÇÃO CIVIL

Nem Jesus Cristo seria capaz de ler em voz alta tal manchete sem antes ler o texto encabeçado por ela, pelo simples motivo que o para preposição e o pára verbo não têm um valor igual no ritmo da frase. No caso de pêlo e pelo, um substantivo e uma contração de preposição e artigo, isso não acontece, ambos têm o mesmo valor em frases como:

Ele foi pelo outro lado.

O cão perdeu o pelo.

As orações, como as palavras, têm partes tônicas e átonas. Comumente o verbo é a parte tônica. Pára, verbo, é muito mais forte que para preposição. Basta ler a manchete acima em seus dois sentidos possíveis, destacando seus pontos fortes, isso tudo para falar das coisas da maneira mais popularmente compreensível:



CRISE PÁRA A CONSTRUÇÃO CIVIL

CRISE PARA A CONSTRUÇÃO CIVIL

Na primeira oração, a parte forte da frase é a sílaba tônica do verbo, na segunda é a sílaba tônica do primeiro substantivo. Pelo mesmo motivo o para preposição é comumente contraído em pra, e o verbo jamais. Qualquer um diz “Ele foi pra casa”, mas nunca ouviremos alguém dizer “Ela não pra de me telefonar”. O mesmo acontece com pôr verbo e por preposição, dos quais tiveram o bom senso de não unificar a ortografia, só aumentando de forma escandalosa a contradição do que fizeram com o pára. Vejamos duas frases:

VOU POR AQUI.

VOU PÔR O LIVRO NA MESA.

A diferença de força entre o por preposição e o pôr verbo é gritante. E o pior de tudo é que, já que o motivo ou pretexto do acordo ortográfico era a unificação – que não houve, apenas uma aproximação dela – da ortografia do português, a grafia dupla de pára e para era comum a todos os países! Mais um exemplo da falta de objetividade que nos infelicita há séculos. Trocando em miúdos, mexeu-se no que era igual para todos para criar dubiedades e piorar a leitura de todos. Não se trata de uma questão de costume, como acontece com quase todo o resto do acordo. Como já afirmei, nem Jesus Cristo saberia ler de primeira a manchete acima citada sem antes consultar o texto a que ela se refere. E se isso já se observa numa manchete de jornal, em prosa literária e poesia o desastre é completo, tenho colecionado exemplos lamentáveis em vasta quantidade. Enquanto os espanhóis - que, como os franceses, usam muito bem o seu trema – lançam mão até do ponto de interrogação e de exclamação invertidos no início da frase para evitar dubiedades na leitura, todas as orações em português que se iniciarem com um Pára imperativo obrigarão, de agora em diante, o leitor a começar a leitura com uma olhadela para a continuação da frase!

Sobre o trema, é bom lembrar que ele foi suprimido unilateralmente pelo governo fascista português em 1945. O problema da retirada do trema não está nas palavras óbvias, seqüestro, tranqüilo, cinqüenta, Anhangüera – aliás, o meu 12º avô -, pingüim, etc., mas nas de uso minoritário, fato que não me perece justificar, antes pelo contrário, tal supressão. Um único exemplo: aqüíparo. Quantos lusófonos, de todos os países, leriam tal palavra de maneira correta sem o trema? E isso para não citar o que de complicador tal supressão traz para os estrangeiros que buscam aprender português, nem a aberração de não se poder especificar o que se deseja em palavras de dupla pronúncia, como antigüidade e antiguidade, sanguíneo e sangüíneo, etc. Aliás, no novo Dicionário ortográfico, a correta ou dupla pronúncia de todas essas palavras é demonstrada de que maneira? Com o mesmíssimo trema - o expurgado trema – sobre o seu u entre parênteses! É a própria confissão gráfica da impotência. Fato mais grave, por ninguém lembrado, são os tupinismos – como o já mencionado Anhangüera, este de todos conhecido - e africanismos que não serão lidos de maneira exata por quase ninguém com a extinção do trema. É evidente que o governo salazarista, que extinguiu o trema, pouco estava interessado nos africanismos, e menos ainda nos tupinismos, mas daí nós, no Brasil, aderirmos a esse equívoco para seguir os portugueses, esta é outra questão. O autoritarismo do texto do decreto chega, nesse parágrafo do fim do trema, à seguinte enormidade, após declará-lo absolutamente revogado em português:

“Nem sequer se emprega na poesia, mesmo que haja separação de duas vogais que normalmente formam ditongo: saudade, e não saüdade, ainda que tetrassílabo; saudar, e não saüdar, ainda que trissílabo; etc.”

Ora, em duas edições de textos de Camões que preparei e anotei há vários anos, sempre usei o trema, como inúmeros outros, para não transformar alguns dos mais belos versos da língua em versos frouxos. Não conheço maneira melhor de demonstrar a necessidade da se ler saüdade com quatro sílabas. Qual filólogo da borra vai me tirar tal direito? É o salazarismo em sua máxima expressão, ressuscitado no Brasil, onde um povo majoritariamente ignorante, servil e novidadeiro engole tal reforma instantaneamente, enquanto na Europa e em África nem um único acento e nem uma única consoante muda foram suprimidos por ninguém. Agora, a pergunta que não quer calar: se tal acordo não se efetivar em Portugal e África, o que acho mais do que provável, só nós assumiremos o ônus bilionário de tal inutilidade? Alguém faz idéia do patrimônio editorial destruído por nada, caso o acordo não se consolide? O problema, na verdade, não está num livro comum. Quantas pessoas têm idéia do que é uma reforma ortográfica para uma edição crítica, e o quanto custa de sangue, suor e lágrimas, caso seja séria, uma edição crítica?

Na verdade, nada muda no Brasil, apenas a ortografia e a Constituição, as duas coisas em que menos vale a pena mexer. No caso da ortografia, perece que nos aproximamos da 13ª em pouco mais de um século. Não há velho que escreva corretamente neste país, por motivos óbvios, com a exceção daqueles que precisam escrever nas normas vigentes por obrigação profissional.

Mas abdico de todas essas considerações apenas pelo que chamei de ponto indefensável no título deste artigo, a questão do pára e para. Não sei o nome do infeliz que propôs tal miséria, mas tenho suspeitas. Se não suprimirem rapidamente – antes de maior estrago, e só no caso do Brasil, onde tudo se engole – esse equívoco, aí é realmente necessário ler mais o saudoso Thoreau e partir para a ação direta.

Alexei Bueno

18-6-2009

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